Cena Política

Reflexão política sobre a possibilidade de um Ayrton Senna no Brasil de hoje

Confira a coluna Cena Política desta quinta-feira (2)

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Igor Maciel

Publicado em 01/05/2024 às 0:00 | Atualizado em 01/05/2024 às 13:00
Análise

Esta semana completaram-se 30 anos da morte de Ayrton Senna. Imediatamente, a lembrança daquele domingo trágico tomou conta de muitos que viveram a comoção de um país que perdia seu herói naquele momento.

É verdade que é mais fácil encontrar unanimidade ao tratar de pessoas que já deixaram a Terra do que entre os que ainda caminham por aqui, os ditos vivos. Há muitos heróis que só seguiram sendo heróis ao longo das décadas porque foram embora cedo. O melhor advogado de alguns é a ausência.

Senna é um pouco diferente porque realmente simbolizava aquilo que o brasileiro médio poderia ser com muita luta e trabalho, numa época em que o país vivia mergulhado numa hiperinflação excruciante e ainda cuidando do rescaldo político do impeachment de Fernando Collor.

Toda homenagem a Senna é merecida. Mas a unanimidade dele, hoje, infelizmente é retrato apenas daquela época.

Exercitando

Um exercício interessante de se fazer, nesses casos, é tentar imaginar se, estando vivo, o herói ainda seria tão querido nos tempos atuais. Esse processo é importante não para analisar o "herói" em questão, mas os rumos que a sociedade está tomando, principalmente com as redes sociais e o incentivo que os algoritmos da maioria dessas redes dão à cretinice política.

O diagnóstico: Senna ainda seria um herói, um símbolo pelo que construiu. Mas, certamente não haveria a unanimidade em torno dele que existe hoje.

Unanimidade

No campo esportivo, não fosse a tragédia que aconteceu na Itália, imagina-se que Ayrton poderia ter vencido mais um ou dois campeonatos mundiais de piloto, ou até mais, apesar de seus 34 anos em 1994. Michael Schumacher teria um adversário à altura em boa parte de sua carreira, então tudo seria diferente.

Mas, hoje no Brasil, a unanimidade sobre o piloto brasileiro iria depender de outros fatores, até os políticos.

O que importa 1

Nos últimos anos, bons profissionais, empresários, esportistas, músicos, passaram a ser classificados não pela sua atividade principal, mas pelas opiniões que dão sobre política. Chico Buarque, para citar apenas um exemplo, é um dos maiores compositores brasileiros em atividade, mas não passa de "lixo" para boa parte da população, por causa de suas posições políticas. O mesmo acontece com Caetano Veloso.

A lista de gente que deixou de ser “boa no que faz” por causa do que já declarou politicamente é imensa. E eles são tratados como se nunca tivessem tido qualquer valor.

O que importa 2

E não é só a perseguição da direita contra a posição dos compositores que apoiaram Lula. A esquerda faz o mesmo.

Neymar, no futebol, é o melhor jogador brasileiro e um dos cinco melhores do mundo na última década, mas é detestado por metade do Brasil. Tudo por causa de posições políticas, tudo porque apoiou Bolsonaro.

E, de repente, é como se ele nunca tivesse jogado bola direito, como se Chico Buarque fosse medíocre e Caetano Veloso não devesse nem ser reconhecido como músico.

Eles poderiam se preservar mais? Sim. Mas isso não anula o trabalho deles. Ou não deveria. 

Antes, as pessoas conseguiam dividir os feitos da atividade principal de uma personalidade e suas posições políticas. Quando Sócrates defendia a democracia, no meio da ditadura militar, você imagina que algum Corintiano que apoiava os militares passou a torcer pelo Palmeiras?

As redes sociais fortaleceram nichos, bolhas de representatividade crítica e hoje tem quem torça contra a Seleção Brasileira quando Neymar está em campo. Na verdade, é bem comum.

O que diria

No passado, quando Ayrton Senna estava em atividade como piloto, era comum e aceitável dar respostas neutras para temas polêmicos. Ele sempre foi considerado um bom moço. Rezava antes das corridas, fazia exercícios regulares e namorava a apresentadora Xuxa.

Mas o que diria um Ayrton Senna nos tempos de hoje quando fosse perguntado sobre Lula (PT) e Bolsonaro (PL)? O que ele diria sobre o papel do Supremo Tribunal Federal? Ele seria contra ou a favor da regulação das mídias sociais? Ayrton Senna seria favorável à liberdade de ensino ou reclamaria da doutrinação ideológica nas escolas?

Importa?

Agora, muitos de vocês, leitores e leitoras, devem estar acusando o colunista neste momento: “seriam perguntas idiotas para se fazer ao Ayrton Senna”. E todos vocês têm razão. São perguntas idiotas até para quem é da política, quanto mais para alguém cuja participação no mundo se dava pelo automobilismo e não pela política.

Hoje, olhando o que Senna representou, parece idiotice. Mas, pode apostar, ele seria questionado sobre todas essas coisas.

Isentão

Dependendo do que respondesse, iria desagradar boa parte da população e “deixaria de ser um bom piloto”. Se não respondesse nada, seria acusado de ficar em cima do muro e ser um “isentão” ou “não se preocupar com o Brasil”.

Ayrton Senna como piloto e figura humana excepcional, hoje uma unanimidade, talvez fosse só uma “opinião”.

Parece absurdo. É um absurdo. Mas é o mundo no qual nós vivemos.

Bolhas

A politização de tudo, a polarização ideológica rasa e os cretinos fundamentais que se estapeiam nas redes sociais inviabilizaram os heróis brasileiros do tipo Ayrton Senna. Os que são símbolos, que unem o país, que passam mensagens positivas e afirmativas de esperança com trabalho e esforço ou com sua arte, os que conseguem provocar orgulho e aglutinar brasileiros tornaram-se impossíveis.

Hoje, separar em bolhas é mais lucrativo e eleitoralmente mais prático. Não se valoriza quem une, mas quem divide. É um Brasil diferente de 30 anos atrás, para pior.

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